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Animais comunitários em condomínio: o dever de cuidado à luz do princípio da participação comunitária.

Cachorro na rua tem é que matar, cachorro em rua do jeito que vemos por toda banda, com problema e doença, amontoado, trazendo doença para população. (…) Cachorro de rua para mim é perder tempo. Eu, se passar por cima de um cachorro, nem olho para trás, penso que não tem dono”.[1]

A declaração, feita pelo Vereador Eli Corrêa (DEM), em sessão da Câmara de João Pinheiro-MG, revela a completa ignorância – ou torpeza – humana em relação aos animais que vivem nas ruas.

O vereador escancara que pouco ou nada sabe sobre a consciência e dignidade própria do animal não humano, bem como a vedação constitucional à crueldade, prevista no artigo 225, §1º, inciso VII[2], da Carta Magna, que impõe o controle populacional ético, por meio da esterilização cirúrgica[3](castração), vedado o extermínio de animais saudáveis.

Não obstante a larga comprovação científica acerca da senciência dos animais não humanos[4], tal despautério não é exclusividade de Corrêa (que depois se retratou à imprensa[5]), o que demonstra a urgência de proteção efetiva aos animais que vivem nas ruas.

Embora a interação do homem com os animais constitua seu processo civilizatório e que dados sociodemográficos já apontam que mais da metade dos lares possui animais de companhia[6], igualmente crescente é o número de animais abandonados vivendo nas ruas do Brasil.

A despeito da necessidade de recolhimento e tratamento de muitos animais e das condições ideais de cuidados e bem-estar presumirem a criação do animal no ambiente doméstico sob a responsabilidade de seus guardiões, fato é que não há espaço nem recursos para o recolhimento e manutenção de todos os animais de rua – cerca de 30 milhões[7] – em condições que respeitem os indicadores de bem-estar animal.[8]

E, na contramão da omissão estatal, muitos desses animais são cuidados e protegidos pelos membros das comunidades que habitam, com quem estabelecem uma relação de dependência, sendo denominados “animais comunitários”

Por óbvio, isso não exime o poder público de concretizar a proteção a esses indivíduos, titulares de direitos fundamentais, na qualidade de seres com dignidade própria.

Além do amparo constitucional, a Lei de Crimes ambientais estabelece pena de reclusão de 2 a 5 anos a quem maltratar o animal, aumentada de um sexto a um terço se da prática resultar a morte do indivíduo[9].

Dentre os princípios gerais que norteiam a proteção jurídica dos animais, destaca-se o PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA[10], que pressupõe que o Estado e a sociedade devem andar juntos na defesa dos interesses ambientais e no desenvolvimento de uma política ambiental adequada, o que abrange os cuidados aos animais.

Sobre os animais comunitários, diversos Estados e Municípios da Federação possuem legislação específica a respeito. Em suma, não há divergências com relação ao conceito de cães comunitários e ao controle populacional ético, consistente na esterilização cirúrgica, com vedação ao extermínio de animais saudáveis.

Em âmbito condominial, mesmo ante a ausência de legislação específica, é possível defender a permanência destes em áreas comuns do condomínio, como forma de assegurar a proteção dos animais contra práticas e/ou circunstâncias que coloquem em risco sua integridade. É DEVER/DIREITO da coletividade zelar pelo meio ambiente e isso inclui os animais que dele fazem parte.

Em outras palavras, não se trata apenas da perspectiva animalista. A solidariedade interespécies abrange o direito fundamental dos indivíduos humanos de agirem em consonância aos seus valores morais, no exercício de suas liberdades individuais, ainda que em âmbito comunitário. Logo, não se trata apenas do direito dos animais, mas também do direito fundamental dos moradores a protegê-los e garantir que vivam em condições que garantam seu bem estar, direito este que só poderia ser questionado na hipótese prevista no artigo 1.336, IV, do Código Civil[11]. Ainda assim, permanece a vedação expressa a quaisquer atos de crueldade contra os animais.

Ou seja, mesmo que fosse prevista em regimento a proibição de prover cuidados a animais comunitários, a remoção forçada, envenenamento ou qualquer ato de violência contra esses animais por condôminos ou membros da administração condominial caracteriza maus-tratos, crime punível com pena de 2 a 5 anos de reclusão, aumentada de um sexto a um terço se resultar na morte do animal, conforme previsto no artigo 32 da lei de crimes ambientais (Lei 9.605/1998):

 

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

(…)

  • 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda. (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020)
  • 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

 

Dessa forma, a retirada desses animais do espaço comum só pode ser realizada por meios legais, destituídos de violência, a saber, com o encaminhamento a instituições de acolhimento ou pela adoção responsável. Além disso, proibição regimental de prover cuidados aos animais comunitários afronta o direito do animal e do próprio cuidador. Isso porque, fere a liberdade desses moradores, cujos direitos humanos de 3ª dimensão abrangem a solidariedade intesespécies, e causa sofrimento aos animais, que ficariam desprovidos de água e alimentação, em desrespeito às suas 5 liberdades[12], como vem reconhecendo a jurisprudência pátria.

Em recente decisão da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, proferida na Ação Popular sob os autos n. 5045631-35.2021.4.04.7100/RS[13], foi concedida medida liminar proibindo a remoção de cadelas comunitárias de área particular. Vejamos:

“Conquanto não haja autorizacão formal da Empresa, o consentimento tácito caracterizado ao longo dos anos impede que a ECT adote medidas repentinas de desacolhimento dos animais, considerando a irreversibilidade dos danos que podem suceder ao ato.”

(…)

Por tudo o que aqui relatado, entende-se que a postura mais segura a se adotar neste momento é aquela que não acarrete danos irreversíveis, tampouco obste eventual ordem futura em sentido diverso. A tutela inibitória de urgência para proibir a remoção/despejo das cadelas ‘Pretinha’ e ‘Branquinha’ bem se amolda a esses parâmetros.

(…)

Concedo a medida liminar para o fim de proibir a remoção/despejo das cadelas “Pretinha” e “Branquinha” do seu local de moradia no complexo operacional dos correios, na Av. Sertório, n. 4222, nesta capital, bem como impedir a remoção das novas casinhas doadas para o abrigamento dos mencionados cães;”

 

Em outro caso análogo, ocorrido em Ferreira de Santana/BA, o condomínio foi proibido de impedir que moradores alimentassem gatos comunitários[14].

Vejam que a situação é a mesma: animais comunitários com vínculos com a comunidade que habitam, da qual dependem para a manutenção de sua saúde e vida.

Em resumo, conclui-se que:

  • O condômino não pode ser penalizado ou proibido de prover cuidados aos animais comunitários residentes do condomínio.
  • A remoção forçada, envenenamento, descarte ou qualquer ato de violência caracteriza CRIME de maus-tratos, previsto no artigo 32 da Lei 9605/1998, com pena de 2 a 5 anos de prisão;
  • Os cuidados aos animais comunitários não oferecem risco aos moradores, pelo que não caracterizam descumprimento dos deveres previstos no artigo 1.336 do Código Civil.
  • Eventual alteração regimental para inclusão de disposições acerca dos animais comunitários deve atentar-se à proibição de impedimento genérico de cuidados por parte dos moradores.

 

 

Numa analogia aos direitos humanos, percebe-se que direitos pós-humanos[15] de segunda dimensão, apesar de crescente reconhecimento, tem sua fruição tolhida pela ausência de políticas públicas aptas a concretizar seu exercício pelos seus titulares não humanos. Assim, o olhar pós-humanista da sociedade encontra entraves na restrição de consideração de interesses ao campo moral[16] e na omissão prestacional do Estado na efetivação dos direitos dos animais.

Nesse cenário, a legitimação e viabilização de cuidado ao animal comunitário desponta com um passo factível na proteção e defesa dos interesses de animais não humanos, como forma de preencher a lacunosa atuação do poder público e responder à urgência de indivíduos que não podem esperar. Afinal, quem sofre tem pressa.

 

Rafaela Teixeira da Costa é Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (2013). Advogada. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela UNIDERP. Especialista em Direito Animal pela ESMAFE/UNINTER. Educadora Animalista pela UFPR. Membro da Comissão Independente de Direito Animal – CIDA. Pesquisadora em Direito Animal pelo Instituto Piracema. Atuou como advogada nos projetos de extensão NEDDIJ – Núcleo de Estudos e Defesa dos Direitos da Infância e da Juventude e NUMAPE – Núcleo Maria da Penha e possui experiência em Direito das Famílias, Direito da Criança e do Adolescente, Direitos da Saúde e Direito Animal. No terceiro setor, atuou como Secretária da Associação Petiatras – Associação Sem Fins Lucrativos de Atividades Assistidas por Animais e foi co-fundadora do projeto Bazar dos Resgatados, voltado para a arrecadação de fundos para o custeio de despesas de cães resgatados em situação de abandono e maus-tratos.

 

Vitor Ferreira de Campos é Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e graduado em Direito pela mesma instituição. Coordenador de Área em Ciências Sociais Aplicadas na Cogna Educação, e advogado sócio fundador do escritório “Vitor Ferreira de Campos – Sociedade Individual de Advocacia”, em Londrina, Paraná. Trabalha nas áreas de Planejamento Empresarial Familiar, Direito de Família, Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Colunista do Portal F5 Jurídico.

 

 

[1] https://oglobo.globo.com/politica/vereador-em-minas-gerais-defende-morte-de-cachorros-de-rua-gera-indignacao-entre-ativistas-24984523

 

[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasilia, DF, 05 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.html>. Acesso em: 26 de fevereiro de 2021

[3] GARCIA, Rita de Cássia Maria. Estudo da dinâmica populacional canina e felina e avaliação de ações para o equilíbrio dessas populações em área da cidade de São Paula, SP, Brasil. 2019, 265p. : il. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia.

[4] Declaramos o seguinte: “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos dos estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e aves, e muitas outras criaturas, incluindo os polvos, também possuem esses substratos neurológicos.”

[5] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/04/26/vereador-de-mg-que-defendeu-morte-de-animais-diz-que-agiu-por-emocao.htm

 

[6] FISHER, et al. Os cães comunitários na pauta da bioética ambiental. Bioética, saúde global e meio ambiente / Caroline Filla Rosaneli, Marta Luciane Fischer (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2021. 316 p. (Série Bioética, Volume 14), p. 135

[7] Segundo o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV/SP), estima-se que há 30 milhões de animais vivendo nas ruas no Brasil, sendo 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães.

[8] FISHER, et al. Os cães comunitários na pauta da bioética ambiental. Bioética, saúde global e meio ambiente / Caroline Filla Rosaneli, Marta Luciane Fischer (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2021. 316 p. (Série Bioética, Volume 14), p. 135

[9] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm> Acesso em 20/08/2021

[10] Instituído pelo Decreto 16.431/2016, do Município de Belo Horizonte/MG “o qual pressupõe que o Estado e a sociedade devem andar juntos na defesa dos animais e no desenvolvimento de uma política de proteção adequada” (art. 3º, III). Disponível em: http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1169141. Acesso em: 23/08/2021

[11]  Art. 1.336. São deveres do condômino:

(…).

IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

[12] As liberdades animais são reconhecidas mundialmente como indicadores de bem-estar. São elas: a liberdade de sede, fome e má-nutrição; a liberdade de dor e doença; a liberdade de desconforto; a liberdade para expressar o comportamento natural da espécie; a liberdade de medo e de estresse.

[13] AÇÃO POPULAR Nº 5045631-35.2021.4.04.7100/RS

[14] https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/09/14/justica-impede-que-gatos-sem-dono-e-que-vivem-em-areas-comuns-sejam-expulsos-de-condominio-na-ba.ghtml

[15] “O Direito Animal busca no pós-humanismo fundamento para enfrentar a questão da exploração, opressão e dominação da natureza e dos animais não-humanos (…).” SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/9144>. Acesso em 25/04/2021.

[16] Idem, p. 162.

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